1º Domingo da Quaresma

“Fizeste-nos para ti, e inquieto está nosso coração enquanto não repousa em ti” (S. Agostinho)

Santo Agostinho interpreta a tensão vital que nos habita como um chamado constante a voltar a Deus, mesmo quando, pelas ilusões da falsa liberdade, nos afastamos do caminho certo. Atração para Deus, como a origem e fonte inesgotável de vida, e tentação a nos colocarmos em alternativa a Ele é a sorte que nos acompanha.

A narração da criação do ser humano proposta pela 1ª Leitura, com sua linguagem simbólica e altamente poética, destaca o cuidado carinhoso com o qual Deus chama à existência o homem, o faz participe de sua mesma vida e dignidade e seu parceiro no cuidado da beleza e da fecundidade da criação inteira, que é “um jardim a ser cultivado”. No centro do jardim, como no centro da existência humana, o Senhor faz brotar a “árvore da vida” e a “árvore do conhecimento do bem e do mal”.

Vida em abundância e conhecimento na intimidade recíproca são os dons com que o Senhor enriquece a existência e a missão de Adão e Eva. A cena encantadora, que apresenta o Senhor “passeando à brisa da tarde no jardim”, à procura de Adão e Eva para deter-se em amável conversa com eles, como com seus íntimos amigos, irradia toda a beleza e o dinamismo da relação que o Senhor estabeleceu entre si mesmo e o ser humano, ao criá-lo à sua imagem e semelhança.

O diabo, o inimigo da vida, o atrapalhador que engana o homem com a ilusão da falsa promessa e da perspectiva de tornar-se fonte totalmente  da própria “nudez”, isto é, da radical incapacidade de realizar, de verdade, tanto a vocação à autêntica dignidade e liberdade como a missão de construir um mundo capaz de espelhar a beleza divina: “Então os olhos de ambos se abriram, e, como reparassem que estavam nus, teceram tangas para si com folhas de figueira”.

O Senhor, porém, não abandona quem trai, fica fugindo e de se esconde. A narração do pecado tem um seguimento de promessa e de esperança. A voz do Senhor, à procura de seus amigos escondidos pela vergonha e o sentido de culpa, ao primeiro ressoar no jardim – “Onde estás?”, – parece vibrar como uma ameaça. Na verdade, ela prepara a promessa de resgate da armadilha da serpente enganadora: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar”.

A condição que Adão e Eva terão que enfrentar “fora do jardim”, longe das próprias e autênticas raízes, será amenizada pela luz desta promessa. A pergunta de Deus ao homem- “Onde estás” – revelará plenamente seu carinhoso cuidado na voz cheia de ternura com que Jesus ressuscitado falará a Maria Madalena no jardim da ressurreição: “Maria!” (…) “Rabbuni!”.

Na 2ª Leitura, Paulo desenvolve, em profundidade, a relação que Deus tem estabelecido entre a aventura negativa de Adão e a resposta de obediência e de amor, realizada por Cristo, “novo Adão”, início de uma humanidade nova.

O dom da salvação em Cristo é bem maior do que o mal praticado pelo homem. Deus não se deixa vencer em bondade e misericórdia. Pela fidelidade no amor e na obediência filial de Cristo, o Pai derrama, gratuitamente e com abundância, a vida nova no Espírito, e dela nós vivemos.

A transgressão de um só levanta a multidão humana à morte, mas foi de modo bem superior que a graça de Deus, ou seja, o dom gratuito concedido através de um homem, Jesus Cristo, se derramou em abundância sobre todos.

Cristo assume sobre si nossa condição humana de pecado e com sua vida de dedicação filial, sobretudo com sua páscoa, revira a situação, abrindo caminho para voltar ao projeto original de Deus e realizá-lo em plenitude.

O evangelho narra que Jesus se apresenta entre os pecadores para ser batizado por João e que, cheio do Espírito Santo, é conduzido por este mesmo Espírito a enfrentar o diabo no “deserto”, lugar da esterilidade e da provação, contraposto ao “jardim”, lugar da vida e da comunhão, no qual Deus tinha colocado o homem, para que cuidasse e gozasse de sua beleza e fecundidade.

O deserto, como o jardim do primeiro Éden, não é simplesmente um lugar geográfico, mas indica a sofrida situação existencial do homem “desertificada”, como repetia Bento XVI, ao descrever a condição do homem pós-moderno, fechado em si mesmo e interiormente corroído pela pretensão de ser o centro do mundo, sem relação com Deus e em competição com os outros (cf. Homilia na Santa Missa da abertura do Ano da Fé. 11/10/2012).

Jesus penetra dentro deste deserto, conduzido pelo espírito, para partilhar a dura condição humana e vencer, com o amor e a obediência, o poder obscuro do maligno. “A Palavra se fez carne e veio morar entre nós”. Com a três tentações, o tentador procura afastar Jesus do projeto do Pai. Propõe-lhe o caminho do sucesso obtido com o milagre fácil (mudar as pedras em pão para satisfazer a fome), com gestos que produzem prestígio espetacular e fácil consenso (jogar-se do templo diante do povo), prometendo-o com o poder (adorando o poder).

Eis as tentações que, em formas variadas, cada um, continua a enfrentar ao longo da vida. A Igreja não fica imune a isto, nem no nosso tempo, como, com vigor, destaca frequentemente o Papa Francisco.

Jesus, no entanto, animado pelo Espírito, rejeita com a força da Palavra de Deus, as seduções e manifesta sua verdadeira condição de Filho de Deus, assumindo até as extremas conseqüências a escolha da humildade e da dedicação ao Pai.


Jesus, “novo Adão”, com a luta no deserto, reestabelece a verdadeira relação da obediência no amor com o Pai, que o “primeiro Adão”, no Éden, não soube guardar e valorizar. Jesus, com sua luta de quarenta dias e sua vitória, vence as provações que Israel, em sua peregrinação de quarenta anos nos desertos, não tinha conseguido superar, abandonando-se à murmuração contra Deus e à idolatria.

Diocese de Limeira

Nenhum comentário: