Não existe uma forma
menos “sofrida” de adquirir a virtude da temperança? São João Cassiano
(370-435) explica por que é necessário que o corpo sofra um pouco. A razão é
muito simples: não é possível cometer o pecado da gula sem a cooperação do
corpo. E isso é evidente, já que os anjos, por exemplo, não podem pecar por
gula, no sentido próprio da palavra. Ora, se é com o corpo que acontece o
pecado, o combate à doença da gastrimargia só pode acontecer caso o corpo entre
na luta. Por isso, deve-se fazer jejum. Esses dois vícios [a gula e a luxúria],
por não se consumarem sem a participação da carne, exigem, além dos remédios
espirituais, a prática da abstinência.
Não basta o propósito
do espírito
Na verdade, para
quebrar os seus grilhões, não basta o propósito do espírito (como acontece em
relação à ira, à tristeza e às outras paixões que, sem afligir o corpo, a alma
sozinha consegue vencer), mas é imprescindível a mortificação corporal pelos
jejuns, as vigílias e os trabalhos que levam à contrição, podendo-se
acrescentar também a fuga das ocasiões insidiosas. Sendo tais vícios oriundos
da colaboração da alma e do corpo, não poderão ser vencidos sem ambos se
empenharem nesse processo. Nós, medíocres que somos, não temos a maturidade
necessária para a santidade, por isso não seríamos capazes de nos manter em
ordem, naquele equilíbrio que “tempera” a vida, sem o auxílio do jejum. Com o
jejum somos capazes de rechaçar as incursões hostis da sensualidade e libertar
o espírito para que se eleve a regiões mais altas, onde possa ser saciado com
os valores que lhes são próprios. É a imagem cristã do homem quem exige esses
voos.
Fazer jejum não é
passar fome
Devemos estar prontos
para a renúncia e a severidade de um caminho que termina com a instauração da
pessoa moral completa, livre e dona de si mesma, porque um dever natural nos
impulsiona a ser aquilo que devemos ser por definição. Nunca é demais insistir
no fato de que o jejum não nasce de corações ressentidos e que odeiam a vida. A
Igreja e seus santos sempre reconheceram a bondade fundamental desta vida e dos
alimentos que a sustentam. Um santo não é um faquir, e o ideal ascético cristão
nunca foi o de deitar numa cama de pregos ou engolir cacos de vidro. Desde o
Novo Testamento, a Igreja sempre condenou o “destempero” dos santarrões e das
suas seitas. Jejuar não é simplesmente passar fome. Se assim o fosse, a
anorexia das modelos seria virtude heroica e os famélicos da história poderiam
ser canonizados. Mas a simples fome não santifica ninguém. Para que dê o seu
fruto, o jejum deve ser acompanhado de uma atitude espiritual adequada, pois a
doença espiritual que desejamos curar é, seja permitida a redundância,
espiritual.
A intenção não é
detalhe
O pecado não está no
alimento, mas no desejo. São Doroteu de Gaza (século VI) explica isso a partir
de uma comparação com o casamento. O ato sexual realizado por um devasso pode
ser externamente idêntico ao de um esposo, mas sua natureza é completamente diferente.
Nos atos humanos, a intenção não é um mero detalhe.
Assim também é na
alimentação. O homem sadio e o homem que sofre de gastrimargia podem comer os
mesmos alimentos nas mesmas quantidades, mas somente o doente comete idolatria.
Quando, diante dos alimentos, nos esquecemos de Deus e começamos a desejar o
nosso próprio bem, mais do que a glória de Deus, geramos uma desordem no nosso
próprio ser.
Extraído do livro “Um
olhar que cura – Terapia das doenças espirituais”
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