Festa da Transfiguração do Senhor

A cena da Transfiguração situa-se nos inícios da segunda parte do Evangelho de Marcos. A primeira parte (Mc 1, 1 – 8, 29) parece querer ser a resposta à incompreensão das pessoas que se interrogam – “quem é este homem? ”– sem atinarem com a resposta certa, culminando com a confissão de Pedro: “Tu és o Cristo!” (8, 29). Mas perante a revelação da natureza da obra messiânica de Jesus, que passa pela aparente derrota da Paixão e da Cruz, surge a incompreensão dos próprios discípulos, a começar pelo próprio Pedro (8, 31-33). A visão antecipada da glória do Messias na Transfiguração serve de corretivo para aqueles que ficaram confundidos com o primeiro anúncio da Cruz como meio de salvação (8, 31 – 9, 1). Para nós, é também uma visão antecipada da vinda gloriosa de Cristo, a encher-nos de esperança (cf. Filp 3, 21). A Transfiguração do Senhor nada tem a ver com os mitos gregos das metamorfoses. O próprio S. Lucas, melhor conhecedor da cultura grega, teve o escrupuloso cuidado de evitar o verbo grego usado por S. Marcos – metamorfôthê, transfigurou-Se – substituindo-o por um circunlóquio: “ao rezar, ficou outro o aspecto do seu rosto”. Nos mistérios gregos, chega-se progressivamente à transformação da natureza – a metamorfose –, através duma iniciação mistagógica, ao passo que esta transfiguração de Jesus foi repentina e passageira, uma manifestação do que Jesus já era antes.

Pedro, Tiago e João, são os três prediletos de Jesus, destinados a ser “colunas da Igreja” (Gal 2, 9) particularmente firmes, também testemunhas da ressurreição da filha de Jairo (Mc 5, 37) e da agonia de Jesus no horto (Mt 26, 37), diríamos, uma espécie de núcleo duro dos Doze. “A um alto monte”: Os Evangelhos não dizem o nome do monte que habitualmente se julga ser o Tabor, um monte situado a 10 km a Leste de Nazaré, segundo uma antiga tradição já referida por Orígenes. Como este monte não é muito alto (apenas 560 m), há exegetas que falam antes do Monte Hermon (2.759 m), junto a Cesarea de Filipe, região onde Jesus tinha estado, segundo os três sinópticos, uma semana antes. “E transfigurou-Se diante deles”: o acontecimento é descrito, não como uma visão, mas como uma epifania, pois foi Ele mesmo a “manifestar” a sua própria glória divina, enquanto estava com eles. O fato deveras notável não foi tanto a visão de Moisés e Elias, mas a da glória de Jesus.

“As vestes… resplandecentes…” S. Marcos não faz referência ao rosto de Jesus que ficou brilhante como o Sol (Mt 17, 2). O Evangelista não precisava de pormenorizar mais, pois a referência da brancura sobrenatural das vestes era o suficiente para que o leitor tomasse consciência da personalidade celestial de Jesus (cf. Dan 7, 9; Act1, 10; Apoc 3, 4-5; 4, 4; 7, 9).

 “Moisés e Elias”. A sua presença à volta de Jesus deixa ver como a Lei e os Profetas convergem para Ele, uma vez que tinham preparado e anunciado a sua vinda. A própria tradição rabínica falava de Moisés como precursor do Messias e Malaquias anunciara a vinda de Elias nos tempos messiânicos (Mal 3, 23).

“Três tendas”. Assim se prestava Pedro a facilitar que se prolongasse aquele êxtase paradisíaco. Fala de três e não de um único refúgio, tendo em conta a desigual dignidade de cada uma das pessoas. “Não sabia o que dizia”: Pedro, tomado de assombro, pensa em categorias de um messianismo glorioso e pretende que aquela situação extraordinária se prolongue e mantenha, totalmente alheado da realidade do dia a dia. “Veio então uma nuvem”: mas esta não era uma resposta à sugestão de Pedro para construir um abrigo; a nuvem – a tenda de Deus (cf. 2 Sam 22, 12; Sl 18(17), 12), que cobriu e envolveu Jesus “com a sua sombra” –, aparece sobretudo como um sinal bíblico da presença de Deus, que simultaneamente O revelava e O ocultava (cf. Ex 13, 22; 19, 9; 24, 15-16; 33, 9; Lv 16, 2; Nm 9, 15-23; 11, 25). De acordo com Lc 9, 32, este prodígio deve-se ter verificado de noite, enquanto o Senhor fazia oração (Lc 9, 29). Mas não consta que Jesus se tenha elevado, levitando no ar, como O pintou Rafael. “Este é o meu Filho”. Com estas palavras a cena atinge o apogeu: a voz vinda do Céu (abat-qol, como garantia divina) é mais uma confirmação divina da anterior confissão da fé de Pedro (Mc 8, 29). S. Tomás comenta: “Apareceu toda a Trindade, o Pai na voz, o Filho no homem, o Espírito na nuvem luminosa”.

“Ordenou-lhes que não contassem…” Esta ordem pertence à chamada disciplina do segredo messiânico – a que Marcos dá especial ênfase pela preocupação teológica de fazer ressaltar a incompreensão perante Jesus, a ser superada pelos seus só após a glória da Ressurreição –, visa evitar possíveis agitações populares, que só contribuiriam, para perturbar e dificultar a missão de Jesus.


Comunidade Shalom

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