A Palavra de Deus reúne o povo que lhe pertence, convocando-o à comunhão
com o próprio Senhor para ser um sinal de um mundo diferente, possível para
todos os homens e mulheres pela ação da graças. Jesus, Filho de Deus
verdadeiro, veio ao mundo e trouxe a "cultura do céu", oferecendo-a
com generosidade. "De rico que era, tornou-se pobre por amor para que nos
enriquecer com sua pobreza" (2 Cor 8,9). Nele e com ele se encontra o
chamado e a graça a restaurar todas as coisas. Em Jesus Cristo, Deus "nos
fez conhecer o mistério de sua vontade, segundo o desígnio benevolente que
formou desde sempre em Cristo, para realizá-lo na plenitude dos tempos:
recapitular tudo em Cristo, tudo o que existe no céu e na terra" (Ef
1,9-10). Esta terra não é um restolho a ser desprezado, mas campo de prova e de
missão, entregue a todos os filhos amados de Deus. A nós cabe a resposta a este
plano de amor!
Não faltam os desafios a serem enfrentados para que os sonhos de Deus e
de seus filhos se realizem. Dentre estes, assoma significativo o verdadeiro
abismo entre grupos sociais, passando da extrema e escandalosa miséria até
chegar à abundância, ao esbanjamento e ao desperdício que têm provocado
indignação e clamado soluções construtivas. A sensibilidade especial do
Evangelho de São Lucas para os pobres e pequenos (Cf. Lc 16, 10-31) mostra
Jesus que, através da provocante linguagem das parábolas, quer suscitar novas
atitudes, semeando novas relações entre as pessoas.
Lázaro, o pobre de outrora e de sempre, assim como o rico epulão, continuam
presentes e incômodos, quando a parábola é contada por Jesus. Mas o céu, com
seu modo de viver baseado na comunhão e na partilha, está bem perto de nós.
Antes de pôr o dedo na ferida da desigualdade e da injustiça presentes em nosso
tempo, faz bem olhar ao nosso redor e identificar onde se encontram
experiências diferentes, nas quais o céu desce à terra. Perto e dentro de nós,
existem gestos de comunhão, gente de coração generoso, sensibilidade diferente
à fraternidade. Penso em tantas iniciativas tomadas por pessoas e grupos, como
as tantas obras sociais da Igreja ou de outras instâncias da sociedade, nas
quais se superam as distâncias e a fraternidade se instala. E quantas são as
pessoas tocadas pela força da Palavra de Deus e hoje mais fraternas e sensíveis
às necessidades dos outros, capazes de acolher os outros e proporcionar-lhes
caminhos novos de promoção e autonomia.
Depois, trata-se de alargar a compreensão para verificar as marcas de
verdadeiro inferno existentes em torno a nós, onde o egoísmo se espalha e deixa
seu rastro destruidor. Uma imagem de tal situação me veio há poucos dias diante
dos olhos: um morador de rua recolhendo água suja de uma valeta numa grande
cidade, para quase fazer de conta de se lavar no início de um novo dia. Penso
em tantos homens e mulheres que veem seus filhos vagando pelas ruas, revestidos
de andrajos, com o coração dolorido por não terem roupas adequadas. E os homens
e mulheres que recolhem restos de comida, quais lázaros que competem com cães
vadios? Brada ao Céu a terra que edificamos! A dignidade humana, inscrita por
Deus em todos os seus filhos, grita por novas atitudes. Para acordar a
humanidade adormecida dentro de nós, foram dados lei, profetas e, mais ainda,
alguém que ressuscitou dos mortos (Cf. Lc 16, 29-31). E não falta o grito da
realidade, mas ouvidos sensíveis!
Primeiro passo é saber que o céu, pátria definitiva em que desejamos
habitar, é casa cuja construção começa na terra. Dar guarida a cada pessoa que
clama pelo nosso amor, sem deixar quem quer que seja passar em vão ao nosso
lado. Diante do aleijado encontrado pelas ruas, Pedro e João tinham muito mais
do que recursos materiais: “Não tenho ouro nem prata, mas o que tenho eu te
dou: em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levanta-te e anda!” (At 3,5). Deram a
cura, abriram o coração do homem para Deus. E os textos dos Atos dos Apóstolos
mostram que os primeiros cristãos lutaram pela comunhão de bens, um dos sinais
da presença de Cristo Ressuscitado. Palavra, pão, remédio, abraço, consolo,
sorriso, mãos que elevam, cura. Tudo serve e certamente haverá, no tesouro do
coração de cada pessoa, algo a oferecer. Começar já, do jeito que é possível
para cada um de nós.
Mas muitos podem oferecer outras coisas! Quem tem responsabilidades
públicas, à frente de organismos da sociedade, pode aguçar sua sensibilidade e
priorizar ações correspondentes aos valores da dignidade humana e proporcionar
maior respeito às pessoas, especialmente aos mais necessitados. Há muita cara fechada
e muita burocracia a serem superadas nas repartições públicas. Muitas filas
podem diminuir, se crescer a boa vontade. Há projetos em vista do bem comum a
serem implantados, vencendo interesses corporativos que emperram a vida dos
cidadãos. Existe um caminho de conversão adequado para as pessoas que detêm
cargos eletivos, quem sabe, inscritos até nos discursos bonitos da campanha
eleitoral! Há mãos a serem lavadas na água pura da fonte da vida!
Tudo isso será possível se os valores que norteiam o comportamento
tiverem referências diferentes. Escrevendo a Timóteo, companheiro de jornada no
anúncio do Evangelho, São Paulo fez notar que "na verdade, a raiz de todos
os males é o amor ao dinheiro. Por se terem entregue a ele, alguns se desviaram
da fé e se afligem com inúmeros sofrimentos. Tu, porém, ó homem de Deus, foge
destas coisas, procura antes a justiça, a piedade, a fé, a caridade, a
constância, a mansidão. Combate o bom combate da fé, conquista a vida eterna,
para a qual foste chamado quando fizeste a tua bela profissão de fé diante de
muitas testemunhas" (1 Tm 6, 10-16). A atualidade patente da Escritura
provoca novas atitudes. Só com homens e mulheres renovados e transformados com
os critérios do Evangelho se pode implantar relações novas na sociedade.
Enfim, vale dizer que se o céu é o limite, não há que temê-lo. Quando a
Escritura e a Igreja falam das realidades definitivas, chamadas
"novíssimos do homem", não desejam incutir o pavor, nem converter à
força as pessoas. Não fomos feitos para rastejar no pecado e no egoísmo, mas
pensados por Deus para a felicidade, construída e partilhada nesta terra e
vivida em plenitude na eternidade.
Dom Alberto Taveira Corrêa
Arcebispo de Belém - PA
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