Um dos maiores milagres, deste tempo de Natal, é o de criarmos em nós a
capacidade de repensar e redescobrir valores que, ao longo do ano, foram
deixados de lado ou roubados pela cultura do bem-estar individual. Nesta época
do ano, somos mais família, solidários, falamos mais de amor e paz, de respeito
ao próximo, porque, “no coração de cada homem e de cada mulher, habita o anseio
de uma vida plena, que contém uma aspiração irreprimível de fraternidade,
impelindo à comunhão com os outros”.
Entendemos que este sentimento de solidariedade e fraternidade, que nos
invade no Natal, está dentro de nós, é uma vocação do homem. Mas por que este
‘espírito natalino’ não se torna algo efetivo, no nosso dia a dia, durante os
outros 11 meses do ano?
O fato é que estamos mergulhados numa sociedade que já não constrói
pontes entre seus semelhantes, pelo contrário, evidenciam-se, a cada dia, os
abismos entre o “eu” e o “tu”. Construímos muros cada vez mais altos ao redor
de nossas casas, nos agrupamos, inseguramente, em condomínios que são
verdadeiras fortalezas (ou prisões) de luxo, consumimos compulsivamente – agora
sem sair de casa – para entorpecer nossas angústias interiores. Até ter filhos
se tornou um peso associado ao ‘custo x benefício’, que pode prejudicar uma
viagem para Cancun ou Paris, ou até mesmo a aquisição do carro do ano.
Parece que temos mais, vivemos mais, temos melhores condições e
conforto, mas, existencialmente, nos sentimos fracassados, inseguros e
infelizes. Como diz o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, “a certeza e a
segurança das condições existenciais dificilmente podem ser compradas com os
recursos da conta bancária”.
Em sua mensagem para o Dia Mundial da Paz, o Papa Francisco fez duras
críticas ao que vem chamando de “cultura do descartável”, reflexo desta
sociedade individualista e materialista. Segundo Francisco, não há vida digna
se cada homem e mulher não redescobrir a sua vocação à fraternidade e à
comunhão, ou seja, não podemos falar de paz se não sairmos do nosso comodismo
para cuidar de nossos irmãos mais necessitados. Toda guerra, toda injustiça e
desigualdade social, segundo o Papa, têm a sua gênese na “rejeição radical da
vocação de ser irmãos”.
A fome, a desigualdade, a corrupção, o racismo, a violência, as drogas,
tudo aquilo que desejamos extirpar da nossa sociedade, tem a sua fonte no meu e
no seu individualismo. Sobre todos esses problemas sociais, questionou-nos o
Papa Francisco quando veio ao Brasil por ocasião da Jornada Mundial da
Juventude: “Você é o que lava as mãos e vira para o outro lado?"
Esses discursos de Francisco contra a cultura do conforto e do
individualismo nos ajudam a entender que não basta lutar contra a pobreza,
contra a corrupção ou até fazer uma boa ação de Natal se não combatermos uma doença
muito mais profunda no coração do homem moderno: o egoísmo. Para isso é preciso
que coloquemos em prática o que o Pontífice tem chamado de “cultura do
encontro”.
Como cristãos, não podemos mais nos isolar em nossas ilhas de conforto e
bem-estar, saindo de nosso comodismo apenas em épocas natalinas. O remédio para
a doença do individualismo é o serviço ao próximo, “uma Igreja que se organiza
para servir a todos os batizados e homens de boa-vontade”, desde os que estão
em nosso lar até os mais necessitados e marginalizados da sociedade. Para
sermos felizes todos os dias do ano é preciso seguir o conselho do Mestre: “Há
mais alegria em dar do que em receber” (At 20, 3).
Daniel Machado
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