Dia de Finados


Cada ano, a comemoração litúrgica de Finados proporciona-nos uma rica oportunidade de refletir sobre a morte. Parece-me muito válido recordar verdades que são úteis ao bem-estar espiritual e social. Importantes conclusões poderão advir da meditação sobre essa realidade. Na sociedade moderna, vivemos como se esse fato existisse somente para os outros. Nós não pensamos que um dia morreremos; os outros, eles sim. A visita aos cemitérios, a presença aos sepultamentos e à missa das exéquias merecem a devida atenção, mesmo das pessoas que não costumam pôr em prática a fé cristã ou não a possuem. Esses atos meritórios comumente se restringem ao que ocorre com o outro, não se estendendo à realidade pessoal. Nem tampouco algo de tamanha riqueza, capaz de mudar nosso comportamento, levando-nos a observar os mandamentos do Senhor.

A verdade de fé que integra o conjunto da doutrina cristã, ensinada por Jesus e garantida pelo Magistério Eclesiástico através dos séculos, é que o homem morre uma só vez. Claríssimo o ensino da Epístola aos Hebreus (9,27): "E como é um fato que os homens devem morrer uma só vez, depois do que vem um julgamento". A vivência dessa verdade nos pressiona em favor de uma vida segundo as diretrizes de Jesus, sem esperarmos a correção de nossas falhas através de consecutivas e hipotéticas reencarnações. A crença em uma seqüência de existências contraria a fé cristã. A morte - uma só - nos abre as portas da eternidade, prêmio de nossa fidelidade a Cristo Jesus Ressuscitado. Essa verdade deve ser reafirmada ao recordarmos nossos parentes e amigos que nos precederam na Casa do Pai.

O Dia de Finados nos oferece uma oportunidade rara para o reencontro com as sábias lições que nos são oferecidas pela certeza da morte e a incerteza de quando virá. Diz a Escritura: "Devemos estar sempre vigilantes pois não sabemos nem o dia nem a hora" (Mt 25,13). Ao abrir os olhos para a luz, o recém-nascido recebe uma sentença absolutamente irrecorrível. Esse sopro vital que anima o corpo, desde sua concepção, é marcado com a Cruz de Cristo, que lhe assegura a imortalidade, a ressurreição final. Diante das milhares de sepulturas dos que já passaram por este momento, extraordinárias e fecundas reflexões vêm à inteligência e atingem o coração do ser humano. Esses momentos são fecundos, pois alicerçam certezas, fazem brilhar a verdade em todo o seu fulgor, geram esperança e opõem obstáculos à pressão que o mundo, afastado de Deus, exerce sobre as pessoas. Como tudo se transforma em torno de nós e quando a força do instinto leva o ser humano por caminhos desastrosos, cresce o número dos dependentes da droga e da atração do sexo em direção oposta à lei de Deus. A meditação de um cemitério contribui para fortalecer o equilíbrio diante das tendências de um mundo imerso no pecado. Os corpos que ali aguardam a ressurreição final nos falam, com extraordinária eloqüência, do além, em favor de um comportamento moral segundo os ensinamentos de Jesus.

A morte não constava da estrutura inicial da criação. Diz São Paulo, escrevendo aos Romanos (5,12): "Eis por que, como por meio de um só homem, o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte, assim ela passou a todos os homens, porque pecaram". Essa doutrina, para o cristão, está intimamente vinculada à vitória de Cristo, que nos faz participar de sua própria Ressurreição. Aí, tocamos no âmago de nossa fé. Diz São Paulo: "Se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa fé" (1 Cor 15,13). Essa modalidade do plano divino explica o traumatismo que sempre acompanha a morte. Por isso, somente a fé é o verdadeiro lenitivo, particularmente, quando ela arranca de nosso convívio parentes e amigos. A sabedoria nos leva a aproveitar esta situação, fruto do pecado, para alcançarmos, pela prática das virtudes, um crescimento segundo o modelo: Jesus Cristo. São Paulo nos fala, na mesma Epístola, de nossa vitória, que será facilitada pelas lições que nos oferece o Dia de Finados: "Portanto, que o pecado não impere mais em vosso corpo mortal, sujeitando-vos às suas paixões (...) Oferecei vossos membros como armas de justiça a serviço de Deus. E o pecado não vos dominará, porque não estais debaixo da lei, mas sob a graça!" (Rm 6,12-14).

Outra grande lição do Dia de Finados é a transitoriedade de tudo o que nos rodeia no mundo em que vivemos. Uma profunda convicção da precariedade do poder, do dinheiro, da saúde, enfim de nossa existência, nos ajuda fortemente a viver segundo a lei de Deus e a acreditar firmemente - até com sacrifício da própria vida - na doutrina que Ele veio trazer ao mundo, para a salvação de todos. A conseqüência é uma conversão que nos conduz a uma intensa paz interior, que vem de Deus e a Ele nos leva.

A celebração das exéquias, em geral, e o Dia de Finados, em particular, merecem especial atenção dos que atuam no campo pastoral. Além da riqueza espiritual sempre atuante junto aos praticantes da fé cristã, são de muita eficácia junto aos que se distanciam das práticas religiosas. Pelos fatores culturais e nossa tradição cristã, pessoas alheias à religião se dispõem a praticar esses atos, levados pela solidariedade com os que sofrem pela morte de parentes, amigos, ou movidos pela saudade dos entes queridos que já se foram. Por isso, a 4ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, reunida em Puebla, México, de 27 de janeiro a 13 de fevereiro de 1979, ao tratar da liturgia, oração particular e piedade popular, nas Conclusões (nº 946), recomenda: "Aproveitar, como ocasião propícia à evangelização, a celebração da Palavra nos funerais".

O Concílio Vaticano II, em Gaudium et spes (nº 18) diz que a fé cristã nos dá uma resposta à ansiedade acerca de nosso destino futuro. "Ao mesmo tempo, oferece possibilidade de comunicar-se, em Cristo, com os irmãos queridos que a morte já levou, trazendo a esperança de que eles tenham alcançado a verdadeira vida junto de Deus".

Dom Eugenio Sales, arcebispo emérito do Rio

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